Compre um livro da nossa coleção e receba gratuitamente um Ticket-Voucher para nos visitar!
ENTRADA NA LIVRARIA LELLO

THE KISSING LADY: UM NATAL POUCO JAPONÊS NO PORTO


Por Filipa Leal

"(Esse Natal) foi inesquecível e difícil de resumir, mas há dois ou três pormenores que me ficaram, como a Chie ficou, para sempre".
 
Passei todos os Natais da minha vida no Porto. A minha vida não tem sido toda passada no Porto: aos 18 anos, fui estudar para Londres, onde vivi três anos; aos 28, fui trabalhar para Lisboa, onde vivo há 13 anos. Mas nunca falhei um Natal em família, a Norte.

No primeiro ano da Faculdade, uma das amigas que viria a ser para a vida inteira, a Chie Ono, não tinha hipótese (tempo? dinheiro?) de ir passar o Natal a Osaka, a sua cidade japonesa. Teria de ficar “sozinha” em Londres, no Campus de Harrow, da Universidade de Westminster, que ficava ali perto de Wembley, onde vivíamos para estudar - amando de longe as famílias. Os meus pais, que já a conheciam, convidaram-na imediatamente para vir passar o Natal connosco a Portugal. Foi inesquecível e difícil de resumir, mas há dois ou três pormenores que me ficaram, como a Chie ficou, para sempre. Serão pormenores pouco natalícios, e dariam até uma lista razoável de mal-entendidos naquela festa subitamente cosmopolita.

O primeiro mal-entendido foi o bidé, que uma rapariga japonesa de 18 anos nunca tinha visto e pensava que servia para lavar o cabelo.

O segundo mal-entendido foi uma espécie de cerimónia do avesso: se, em Portugal, é costume dizermos que não queremos mais, muito obrigada, enquanto o anfitrião insiste para que aceitemos (de bom grado!) mais um copo, no Japão, a coisa passava-se exactamente ao contrário, e nós não sabíamos. O meu pai perguntava à Chie se queria mais um copo de vinho do Porto, e outro, e outro, e a Chie (que nunca bebia álcool!) dizia sempre que sim, que sim, que sim. Era um sinal de boa educação dizer sim enquanto o anfitrião insistisse. Ainda hoje me pergunto porque é que nós, Portugueses, insistimos tanto... 

O terceiro mal-entendido foi a gritaria à mesa, a 24 de Dezembro, do lado da família materna. Uma mesa feliz e barulhenta: falava-se alto, bastante alto, em português e em inglês e em japonês, que os mais novos queriam saber como é que se dizia Natal na língua da Chie; passavam-se as travessas de sonhos e rabanadas; abriam-se “christmas crackers” e lia-se o futuro. Tudo alto, como é costume numa mesa portuguesa, com certeza. Uma alegria imensa! Assustada, a Chie chamou-me à parte e perguntou-me, bastante aflita: porque é que estão todos a discutir?

O quarto mal-entendido foi uma avó beijoqueira. Se pensarmos no Japão, um país onde, muito antes desta pandemia de 2020, as pessoas já se cumprimentavam curvando-se, nunca se beijando, o que faltava aqui era uma avó paterna extremamente beijoqueira. Na noite de 25 de Dezembro, a Chie recebeu tantos beijos (não apenas da minha avó, é certo, que nós somos muitos primos e muitos tios e, neste país de antes do Covid-19, todos se cumprimentavam assim), que no dia 26 de Dezembro, já possivelmente exausta de tanto mal-entendido, a minha amiga japonesa só me perguntou se tínhamos de ir outra vez a casa da “kissing lady”.

 


SOBRE A AUTORA:

Filipa Leal nasceu no Porto em 1979. É poeta, jornalista e argumentista. Trabalhou em rádio, imprensa e televisão. Publicou o seu primeiro livro, lua-polaroid, em 2003, a que se seguiram oito títulos de poesia, entre os quais A Cidade LíquidaO Problema de Ser NorteA Inexistência de EvaAdília Lopes Lopes ou Vem à Quinta-feira. Em 2016 publicou a primeira antologia que reúne poemas de toda a sua obra no livro En los días tristes no se habla de aves. Escreveu, com a realizadora Patrícia Sequeira, a longa-metragem de cinema Jogo de Damas, pela qual receberam o prémio Golden Aphrodite de Melhor Guião no Festival de Cinema do Chipre (2016) e o Prémio de Melhor Guião no International Monthly Film Festival de Copenhaga (2017). Autora e argumentista da série Mulheres Assim, emitida na RTP1 (2016-2017), colaborou também com o programa semanal Literatura Aqui, da RTP2 (Prémio SPA para Melhor programa de Entretenimento 2017). É, ainda, um dos rostos do programa cultural Nada Será Como Dante (RTP2).