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ENTRADA NA LIVRARIA LELLO

O "Michael sempre seguiu o seu próprio caminho e não tinha medo de fazer o que queria"

Hugo van der Ding

A Livraria Lello adquiriu parte do espólio da Brazenhead Books depois da morte do seu proprietário, Michael Seidenberg, conhecido como o "último pirata de Nova Iorque". As memórias do Livreiro estão agora em exposição na recém-inaugurada Gemma. Falamos com Gracie Bialecki, a assistente pessoal do Michael, para descobrir mais sobre aquele espaço onde desconhecidos e personalidades se encontravam para falar de livros madrugada fora. 

Livraria Lello: Começamos com o nome Brazenhead. Lemos duas histórias diferentes sobre a origem e significado deste nome. Podes dizer-nos por que razão o Michael escolheu "Brazenhead"?

Gracie Bialecki: Um dos autores favoritos do Michael era o John Cowper Powys, um dos seus romances chama-se The Brazen Head, e o Michael costumava dizer que era por isso que a livraria se chamava assim. Há uma outra história mais engraçada que costumávamos contar. Antes de se tornar livreiro, o Michael trabalhou na Argosy, uma livraria muito famosa em Manhattan, que ainda existe. Isto era ainda nos tempos das listas telefónicas organizadas por ordem alfabética, por isso, quem procurasse uma livraria, veria logo a Argosy. Ele disse que, já que o A já estava escolhido, seria o B e, por isso, escolheu Brazenhead. Acho que foi uma combinação destas duas histórias.

LL: Qual foi o teu papel na Brazenhead e durante quanto tempo trabalhaste lá?

GB: Fui assistente do Michael durante cerca de 5 anos. O Michael era alguém que nunca pedia nada, nunca pedia ajuda, por isso, ser a sua assistente era um trabalho muito interessante. Uma das coisas que fiz foi fazer cartões de visita na minha máquina de escrever. Como era uma livraria secreta, os cartões de visita tinham muito pouca informação. Normalmente, diziam apenas Brazenhead Books, por marcação, mas as pessoas vinham de todo o mundo, e era uma boa maneira de terem algo que os recordasse da livraria. Eu fazia coisas desse género, ajudava-o com o website e simplesmente estava lá para o apoiar a ele e às suas ideias.

LL: Como foi trabalhar com o Michael. Como era a relação com ele?

GB: 
O Michael foi uma das pessoas mais amáveis e generosas que conheci. Lembro-me que numa das primeiras vezes que fiz os cartões de visita, escrevi o endereço de e-mail errado e a reação dele foi rir-se da situação. Depois, apenas pegámos numa caneta e corrigimos. Podíamos cometer qualquer erro. Ele era grato por tudo o que fazíamos. Nessa altura, eu estava a escrever o meu primeiro romance e estava a recitar poesia na livraria, e ele apoiava-me imenso. Foi provavelmente o melhor patrão que alguma vez tive! Sinceramente, não sei o que poderia ter feito para fazer mal o meu trabalho. E ele era assim com muitos outros escritores. Estava sempre a falar com as pessoas sobre aquilo em que estavam a trabalhar. Estava sempre a ouvi-las. Não importava se viesse à livraria e recitasse um poema que tinha acabado de escrever ou se tivesse cinco livros de poesia publicados, ele ia falar com a pessoa sobre o seu trabalho e seria encorajador para toda a gente.

 

LL: Porque é que o New York Times apelidou o Michael de “o último pirata de Nova Iorque?

GB: 
Apelidaram-no de último livreiro pirata de Nova Iorque. Queriam dizer que ele era alguém que não estava a vender livros através do modelo tradicional. Ou seja, ele não tinha uma livraria com uma frente de loja. Não estava num edifício tradicional. Antes da Brazenhead, ele tinha tido alguns espaços comerciais com entrada pela rua e um horário habitual, mas nunca conseguiu pagar a renda. A certa altura, vendia livros na rua à porta do Metropolitan Museum of Art. Existem muitas livrarias interessantes em Nova Iorque: algumas estão a surgir em Brooklyn, em contentores, outras que são cafés e bares, lugares maravilhosos. A do Michael foi a única que conheci num apartamento e foi isso que realmente a distinguiu das outras livrarias. Por pirata, só queriam dizer que ele sempre seguiu o seu próprio caminho e não tinha medo de fazer o que queria e o que lhe parecia correto.

LL: Podes descrever o que seria um dia "normal" na livraria?

GB:
 Um dia normal começaria por volta das 5 ou 6 horas da tarde. O Michael era um notívago. Ele não se levantava a menos que tivesse um compromisso ou se alguém viesse à tarde, mas, normalmente, ele não dizia a ninguém para vir de manhã. Costumávamos encontrar-nos lá com o Dan Chong, que também ajudava na livraria, e cozinhávamos o jantar. Este era o apartamento do Michael, a cozinha estava mesmo ali, por isso começamos a fazer aquilo a que chamávamos “jantar do staff” como brincadeira. Era a nossa forma de garantir que o Michael jantava e, também, que passávamos tempo juntos. Os primeiros visitantes chegavam por volta das 7 ou 8 horas da noite. Havia sempre um momento, depois do jantar e antes das primeiras pessoas chegarem, em que pensávamos que ninguém viria. Depois, a campainha tocava, e continuava a tocar, e chegava mais e mais gente. As pessoas ficavam até à meia-noite ou uma da manhã ou até quando quisessem. Às vezes, o Michael ia dormir e ainda ficavam lá pessoas. Era o Dan Chong que costumava ficar e certificar-se que todos acabavam por sair, por vezes às 4 ou 5 da manhã.

LL: Como é que as pessoas descobriam a Brazenhead e como é que marcavam as visitas? Recebiam muitos pedidos novos ou trabalhavam principalmente com clientes habituais?

GB:
Era uma combinação de várias coisas. Era definitivamente boca a boca. Passámos a ter um website, talvez em 2013 ou 2014. Até aí, eram apenas pessoas a trazer outras pessoas, ou pessoas a encontrar o Michael no Facebook e a perguntar-lhe sobre a livraria. Depois do website, onde tínhamos um formulário de contacto, recebíamos pedidos de pessoas da Europa, da América do Sul, de todas as partes do mundo. Havia sempre um grupo de regulares, da cidade de Nova Iorque, que vinha uma ou duas vezes por semana. Para além deles, estariam essencialmente turistas. Alguns deles apaixonavam-se verdadeiramente pelo lugar e tentavam voltar sempre que estivessem em Nova Iorque. Era um lugar maravilhoso porque se via pessoas que se começavam a conhecer, e pessoas que estavam lá pela primeira vez completamente admiradas por virem do outro lado do mundo e ter alguém a recebê-las no seu apartamento.

LL: E quanto a uma agenda cultural? O Michael organizava encontros literários ou culturais na Brazenhead?

GB:
 Normalmente tínhamos poesia uma vez por semana. As noites de terça-feira eram noites de poesia. Não havia inscrição, não havia hora de início e não havia hora de fim. Tínhamos um sino, a que chamávamos sino da poesia, e quando a livraria começava a ficar cheia, tocávamos o sino, e quem quisesse partilhava os seus poemas. Era o acontecimento literário mais regular. Muitas vezes, se um autor estivesse a fazer o lançamento de um livro, organizava o after party na Brazenhead. O Michael fazia sempre o que podia para apoiar os autores de alguma forma, portanto, se alguém lhe pedisse para usar o espaço, ele dizia que sim.

LL: Quando a Livraria Lello comprou parte do espólio da Brazenhead Books, encontrámos cópias assinadas de livros de Woody Allen e Margaret Atwood, entre outros. Era comum receber visitas de personalidades? Podes contar-nos algumas histórias sobre essas visitas?

GB: Julgo que o Michael tinha uma grande colecção de primeiras edições assinadas. Alguns dos autores que visitavam a livraria davam ao Michael edições assinadas dos seus livros. O Michael era grande amigo do autor Jonathan Lethem, por isso tinha uma grande coleção dos seus livros assinados. Eles conheceram-se quando tinham 15 anos, foram amigos durante muitas décadas. Também era amigo de Luc Sante, um autor e crítico literário. A Braazenhead era um lugar onde nunca se sabia realmente com quem se estava a falar. Podia-se estar a falar com um autor que tinha publicado muitos, muitos livros, ou podia-se estar a falar com alguém que estava a visitar pela primeira vez, e só se saberia mais tarde, à noite, ou no dia seguinte. Atraía um grande número de pessoas. O Michael também era amigo de Martha Wainwright, irmã de Rufus Wainwright. Ele viveu em Nova Iorque durante muito tempo. Conhecia muitas pessoas. A porta estava sempre aberta, e as pessoas reconheciam ali um espaço interessante e acolhedor.
Para mim, o mais interessante daquele lugar, especialmente quando estava a conhecer o Michael, era o encontro com tantos autores, poder ouvi-los falar do seu trabalho e ver que não era impossível ser-se escritor. Fez-me perceber que qualquer pessoa o podia fazer desde que se dedicasse. Essa era a beleza da Brazenhead: colocar-te num espaço, não só com escritores, mas também com cineastas, pintores, ou outro tipo de artistas, onde podias conhecer alguém que estivesse um pouco mais à frente na jornada artística. Isso fez-me perceber que é possível perseguir os meus sonhos.

LL: Achas que esse era um dos objectivos do Michael - apoiar os escritores que estavam a começar as suas carreiras - ou foi uma coisa que simplesmente aconteceu?

GB:
 Acho que foi um pouco de ambos. Ele queria criar um espaço onde tudo fosse possível. Se lhe dissesse que tinha esta ideia maluca de escrever um livro de poemas, que seriam 100 poemas, e cada poema teria uma linha, escrita em notas de dólar agrafadas, e que queria fazer ali uma leitura, ele diria que era uma ideia maravilhosa. Rir-se-ia disso, mas nunca iria dizer para não o fazer. Era um espaço onde tudo era possível. Era por isso que reunia tantos artistas e tantos escritores. Todos nós sentíamos essa energia.

LL: E quanto ao seu gosto literário? Que tipo de leitor era e quais os seus autores favoritos?

GB:
O Michael era um leitor ávido. Estava sempre a ler algo, e adorava falar de livros. No centro de tudo o que ele fazia, estava apenas o amor pelos livros e o amor pela literatura. John Cowper Powys era um dos seus autores favoritos. Ele lia muito livros grandes. Estava a ler a biografia de Robert Garrow, um biógrafo americano famoso, e estava a ler a sexta série de livros sobre Lyndon B. Johnson. Estava sempre a brincar e a partilhar o que lia, mas também levava os livros muito a sério. Lia muitos livros e estava sempre aberto a recomendações. Tínhamos até começado aquilo a que chamávamos "Book of the Mouth", onde ele recomendava um livro que nós colocávamos no website. Se houvesse um escritor que ele soubesse que tinha publicado recentemente um romance, ele lia-o sempre. Ele apoiava imenso os escritores que conhecia. Em conclusão, seria uma mistura de literatura contemporânea e de alguns livros mais antigos ou alguma recomendação de um amigo.
LL: Gostaríamos de saber se alguma vez visitou a Livraria Lello e qual foi a sua reacção quando soube que parte do espólio da Brazenhead Books foi adquirido por uma livraria do outro lado do mundo.

GB:
Ainda não visitei a Livraria Lello. Gostava muito de o fazer. Estou muito entusiasmada para visitar e para ver o espaço. De certa forma, estou muito feliz por alguém ter preservado a memória do Michael, que é tão bonita. Parece muito longe de Nova Iorque, mas, ao mesmo tempo, a Brazenhead era conhecida em todo o mundo. Tenho a certeza que há pessoas que visitaram a Brazenhead que também vão visitar a Livraria Lello, porque são ambos lugares que os amantes de livros vão visitar. Estou muito entusiasmada por existir este espaço, este monumento, ao Michael. Ele influenciou muitas pessoas e seria uma pena que isso se perdesse. Desta forma, podemos continuar a contar as suas histórias, partilhar alguns dos seus livros e continuar a transmitir esse amor pela literatura.

LL: Qual a importância que exposições como a que Livraria Lello criou em homenagem à Brazenhead Books têm na preservação das memórias de livrarias históricas?

GB:
É tão importante existirem espaços onde pudemos interagir com os livros. Onde não estamos necessariamente para os comprar. A ideia de circular por uma livraria e apenas vaguear pelos corredores e ver o que encontramos. Adoro o facto de ter sido criado um espaço onde as pessoas podem simplesmente ir e sentar-se com os livros e observá-los. Onde não procuramos especificamente este livro ou este autor. É o oposto de procurar na Internet e encontrar exactamente o que se quer, porque não se sabemos o que queremos. Quem lá vai, pode começar a aprender sobre os livros e deixar que o livro o encontre. É também muito inspirador estar em locais como este e, embora seja muito difícil ter uma pequena livraria ou uma livraria de livros usados nos dias de hoje, creio que é muito importante. Não creio que isso vá necessariamente fazer aparecer a próxima geração de livrarias, mas temos de continuar a lembrar as pessoas e continuar a criar espaços como esse, senão, muito lentamente, as coisas continuarão a mudar para o mundo digital. Fiquei muito grata e acho que é maravilhoso ter um espaço físico, especialmente onde se pode tocar nos livros, e estou muito agradecida por ser na Livraria Lello.