

O TRIÂNGULO DE CAMILO
Polígono com três lados e três vértices, o triângulo é uma das formas básicas da geometria. É, simultaneamente, um símbolo universal, associado á Divina Trindade nas muitas religiões desde a Antiguidade Clássica. Pela sua constituição e ligação ao número três, o triângulo simboliza ainda Passado, Presente e Futuro, elementos que se unem em Triângulo de Camilo. Numa iniciativa única, esta exposição traz ao público o manuscrito de uma das mais aclamadas obras de Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, escrita em 1861 na Cadeia da Relação do Porto e depositado, desde 1943, no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. Este triângulo é simultaneamente o elo que liga três pontos de uma só história: o triângulo amoroso de Simão Botelho, de Teresa de Albuquerque e de Baltasar Coutinho; também o triângulo que marca a biografia do autor, que dita a sua prisão e a da sua “mulher fatal”, Ana Plácido, pelo crime de adultério; De Portugal para o Brasil; do Brasil para Portugal, o manuscrito de Amor de Perdição é a prova de como os livros ultrapassam fronteiras. Numa das suas raras saídas do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, estará exposto na Livraria Lello de 16 de março a 08 de novembro de 2023.

Camilo, Uma Conversa Imortal sobre Amor
Há um século o mundo era radicalmente diferente, mas Camilo Castelo Branco já era um monumento da literatura nacional e a Livraria Lello já era a casa do Livro no Porto. Um e outro provam bem como, nas sábias palavras da tão portuense e ainda mais camiliana Agustina Bessa-Luís, “o Porto não é um lugar, é um sentimento”. Sendo um autor do Mundo, Camilo é um autor do Porto e do Douro. Um autor que e mora por isso nas nossas casas, nas nossas estantes, nas nossas mãos. E mora também na Livraria Lello onde o seu busto repousa desde a sua inauguração, a 13 de janeiro de 1906. Camilo não pedia desculpa para viver, para dizer o que pensava e o que sentia, para interpelar a banalidade e agitar as águas estagnadas que por vezes paralisam a comunidade a que pertencemos. Camilo foi, por isso mesmo, sempre um autor do seu tempo. Criou e viveu as modas literárias, sendo popular e vendendo o que escrevia, muitas vezes sob a forma de folhetim, nunca descorando a qualidade literária de que não abdicava nem a visão romântica que protagonizava. Como a Livraria Lello foi uma das primeiras livrarias do Porto a ter o livro como o motor exclusivo da sua riqueza, também Camilo foi um dos primeiros autores a conseguir viver apenas da sua produção literária. Foi em frente à Livraria Lello que Camilo escreveu Amor de Perdição em apenas duas semanas a partir da Cadeia da Relação, onde estava detido por adultério, imortalizando na literatura universal o amor de Simão e Teresa. Amor de Perdição é o romance do Porto. Ao longo de mais de 150 anos, o romance conheceu sucessivas e diferentes edições, desde a primeira de 1862 editada pela Livraria Moré, até às mais recentes como a que integra a The Collection, editada pela Livraria Lello, que volta assim a publicar um dos seus autores mais importantes. Recebemos hoje, com orgulho, na nossa casa o manuscrito que está na origem de um dos maiores fenómenos literários portugueses, expondo-o apenas a alguns metros do lugar onde foi escrito. O manuscrito que carrega o amor e angústia de Camilo e que é um também um monumento da história da Literatura Portuguesa. A Livraria Lello celebra, desta forma, Amor de Perdição partilhando com todo o mundo este tesouro a partir da Livraria que - do Porto para o Mundo - vive, expande e multiplica por leitores de todo o globo este imenso amor do Porto pela Literatura.
Aurora Pedro Pinto
Administradora da Livraria Lello
A Viagem
O manuscrito do Amor de Perdição – a mais emblemática novela de Camilo Castelo Branco – reside sob a majestosa claraboia do Real Gabinete Português de Leitura desde 1943. Nesse ano, cumpriu-se o testamento do comerciante e bibliófilo portuense Francisco Garcia Saraiva, sócio-benemérito da casa, que legou ao belo espaço neomanuelino incrustado no centro histórico do Rio de Janeiro a sua vasta biblioteca, repleta de preciosidades camilianas, garimpadas em leilões e alfarrabistas. Salvo prova em contrário, trata-se da maior camiliana fora de Portugal. Dela, o ponto alto indiscutível cabe ao manuscrito que consagrou Simão e Teresa como protagonistas de uma história de amor cuja força resiste aos séculos. Escrita em 15 dias de setembro de 1861, «num dos cubículos-cárceres da Relação do Porto, a uma luz coada por entre ferros, e abafada pelas sombras das abóbadas», ganhou a forma impressa logo no ano seguinte e, até hoje, incessantes edições. Pouco se sabe das andanças do autógrafo entre a tipografia e o seu desembarque nos trópicos. Certo é que, em novembro de 1929, Garcia Saraiva torna-se o seu proprietário, ao adquiri-lo por “cinco contos de réis”, de um “procurador do Sr. Dr. Arthur Duarte de Almeida Leitão, morador em Lisboa”, segundo consta do recibo selado que chegou até nós. Valorizando tal posse, em 1983, o Real Gabinete co-editou, em parceria com a Lello & Irmão, um volume monumental, tendo a reprodução fac-similada do manuscrito e respectiva edição crítica sob responsabilidade de Maximiano de Carvalho e Silva, acrescido de um estudo histórico-literário de Aníbal Pinto de Castro. Em 2023, o Real Gabinete e a portuense Livraria Lello retomam o diálogo, ofertando a quem se deslumbra com a escadaria vermelha e o magnífico vitral que singulariza a Rua das Carmelitas mais um fator de encantamento: os folios amarelecidos da novela oitocentista, penosamente escrita a dois passos daqui, cujas linhas eternizam a genialidade de um dos maiores escritores da língua portuguesa.
Gilda Santos
Vice-Presidente Cultural e do Centro de Estudos
do Real Gabinete Português de Leitura
Um vértice de “sabedoria”
A Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra é uma das grandes bibliotecas portuguesas e a maior e mais antiga das bibliotecas universitárias. O seu corpo técnico cultivou uma proximidade aos saberes biblioteconómicos, desde o final do século XVIII, o tempo do “primeiro bibliotecário português”, Doutor António Ribeiro dos Santos, que fundaria a Biblioteca Nacional. Depois disso, a Biblioteca muito aprimorou as suas ferramentas de gestão da documentação e da informação e, em 1935, estava pronta para acolher os alunos do pioneiro Curso superior de Bibliotecários-Arquivistas, que então se criou na Faculdade de Letras de Coimbra. Mas, para além de estágios, o seu corpo de bibliotecários foi decisivo na componente teórico-prática do mesmo Curso, dando à Faculdade professores como Jorge Peixoto. Para a atribuição da Marca do Património Europeu/European Heritage Label, em 2014, contaram decisivamente não só a sua reconhecida firmeza sobre a liberdade de acesso, a oposição a todas as formas de censura e o papel decisivo na criação de uma consciência de classe profissional, mas também esta anterioridade das ciências e das boas práticas biblioteconómicas: aqui se fez o primeiro catálogo de matérias (antes de 1743), a mais conhecida classificação bibliográfica (1900) portuguesa, a primeira revista profissional (1963) e se imprimiu o primeiro catálogo produzido em computador por uma biblioteca (1979), no país. Gostamos de acreditar que quando se pensa em “sabedoria” nesta área, se pensa em Coimbra, e que terá sido essa a razão de aparecer aqui a Biblioteca Geral da UC, com a Livraria Lello e o Real Gabinete, como um dos elementos deste Triângulo. Um vértice modesto, um parceiro chamado aqui a validar as condições de exposição e de segurança, afinal a fazer o que lhe ensinaram mais de 500 anos de atividade de serviço público bibliotecário.
João Gouveia Monteiro
Diretor
Biblioteca Geral da UC
Um Amor de Salvação
Por Joel Cleto
Às primeiras horas do dia, tímido e frágil, o sol revelou-se por detrás das serranias de Valongo. Mas, mal despontado, iniciou decidido e imperial o seu percurso pelo firmamento, aproximando-se da cidade e permitindo que, bem cedo, a luz incidisse no interior dos aposentos do escritor, iluminando-lhe o espírito e aquecendo-lhe o corpo. Pela janela, bem do alto do imponente edifício que era, por agora, a sua casa, Camilo vislumbrou uma paisagem deslumbrante. A cidade estendia-se aos seus pés. E – claro – aos da catedral que, ao longe, o parecia controlar e que, imponente, coroava há séculos o morro da Penaventosa. A cidade começou a agitar-se com o bulício das gentes, os carros puxados pelos animais que demandavam a urbe e com os impropérios que, desde cedo, exalavam bem alto das bocas de quem passava nas cercanias. E o escritor, na escrivaninha, absorto na sua criatividade, como que por momentos se esqueceu do seu drama pessoal. Mas, para lho lembrar, por entre as tábuas do pavimento ia emergindo todo o tipo de bicharada. Como se as condições das enxovias, localizadas nos pisos térreos e subterrâneos, de tão nauseabundas afastassem os próprios insetos amantes da humidade e do lixo! Sim. Pareciam estar a fugir daquela podridão! A mesma sorte não tinham os amontoados reclusos que, de um modo desumano, ocupavam aqueles tenebrosos espaços. Sentiu o sol na cara, encheu os pulmões de ar fresco e abriu os olhos sobre o citadino cenário que dominava a sua janela. Pousou a pena e decidiu que a sorte daqueles farrapos humanos teria de ser outra. E se, como lhe haviam afiançado, o rei D. Pedro V o viria hoje visitar, então colocaria o sensível monarca a par daquelas incivilizadas condições. Quem, se não o monarca, para inverter este estado de coisas? Nas folhas manuscritas pousadas sobre a mesa, junto ao amplo janelão, vinha nascendo por aqueles dias aquela que se viria a tornar numa das joias da literatura ultrarromântica em português: Amor de Perdição. Mas a prisão e permanência de Camilo, durante um ano, na Cadeia da Relação do Porto, ficaria marcada também, nas horas seguintes, pela sua decisiva ação, junto do jovem rei, que impôs um conjunto de medidas de salubridade que viriam alterar de um modo radical as terríveis condições de vida dos presos que, ao contrário de Camilo, não gozavam do estatuto de ser “gente de condição”. Foi um ato de extrema compaixão e solidariedade com o Próximo. Foi também um… Amor de Salvação.
FÓLIOS EM EXPOSIÇÃO EM O TRIÂNGULO DE CAMILO
Uma folha de rosto marcada por uma citação de D. Francisco Manuel (1608-1666) e assinada pelo autor; Uma dedicatória ao Ministro Fontes Pereira de Melo (1819-1887); Uma introdução em que se apresenta Simão Botelho e se antevê o seu final; O primeiro olhar entre Simão e Teresa de Albuquerque, herdeira de uma família rival; O premir do gatilho que conduz Simão ao desterro; A morte de Teresa no Convento; O trágico final de Simão e Mariana e a derradeira revelação da história à genealogia do autor. Escrito em fólios que parecem ter sido arrancados de um qualquer caderno que acompanhava Camilo na prisão, é destes sete excertos que se compõe O Triângulo de Camilo, expondo as passagens do manuscrito de Amor de Perdição que melhor parecem resumir esta história, feita de amores e de lágrimas.

FOLHA DE ROSTO
Quem viu jámais vida amorosa, que não
a visse afogada nas lagrimas do desastre ou
do arrependimento?
D. Francisco Manoel (Epanaphora amorosa).
DEDICATÓRIA A FONTES PEREIRA DE MELO
Ao Ill.mo Snr. Antonio Maria de
Fontes Pereira de Mello .
[…]
Na cadeia da Relação do Porto,
aos 24 de Setembro de 1861
Camilo Castelo Branco
(fólio 1)
INTRODUÇÃO
Simão Antonio Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro, e estudante na Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na occasião de sua prisão na cidade de Vizeu […].
(fólio 4)
CAPÍTULO 2
Amava Simão uma sua vizinha, menina de quinze anos, rica herdeira, regularmente bonita e bem-nascida. Da janela de seu quarto é que ele a vira a primeira vez, para amá-la sempre. Não ficara ela incólume da ferida que fizera no coração do vizinho: amou-o também, e com mais seriedade que a usual nos seus anos.
(fólio 22)
CAPÍTULO 10
Baltasar Coutinho lançou-se de ímpeto a Simão. Chegou a apertar-lhe a garganta nas mãos; mas depressa perdeu o vigor dos dedos. Quando as damas chegaram a interpor-se entre os dois, Baltasar tinha o alto do crânio aberto por uma bala, que lhe entrara na fronte. Vacilou um segundo, e caiu desamparado aos pés de Teresa.
(fólio 166)
CAPÍTULO 20
Cruzou os braços Simão, e viu através do gradeamento do mirante um vulto.
Era Teresa.
Na véspera recebera ela o adeus de Simão, e respondera enviando-lhe a trança dos seus cabelos.
(fólio 288)
CONCLUSÃO
Dois homens ergueram o morto ao alto sobre a amurada. Deram-lhe o balanço para o arremessarem longe. E, antes que o baque do cadáver se fizesse ouvir na água, todos viram, e ninguém já pôde segurar Mariana, que se atirarar ao mar. […]
(fólio 311)